STF declara inconstitucionalidade da legítima defesa da honra

 

Beatriz Vasconcelos

 

 

Muito comum no tribunal do júri até os anos 80, para defender a legitimidade de agressões que, em tese, visam defender a honra, a tese da legítima defesa da honra pedia pela absolvição em razão de momentos de suposta raiva justificada por alguma ofensa íntima que possa ter causado prejuízo à índole e à imagem pessoal perante a sociedade. Um caso famoso do uso desta tese, de repercussão nacional, foi o caso da Ângela Diniz e do Doca Street – que, inclusive, rendeu o podcast “Praia dos Ossos”.

Essa tese alegada não tem previsão legal expressa, sendo que a legítima defesa da honra seria uma interpretação extensiva do artigo 25 do Código Penal, que prevê:

Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

Era uma tese constantemente criticada por diversos movimentos sociais, mas, recentemente, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779, que é uma ação originária que busca discutir a incompatibilidade de algum postulado jurídico frente a Constituição de 1988.

Foi determinada como inconstitucional a tese da legítima da defesa da honra por suas raízes “machistas e patriarcais”, violando, por muitas vezes, o direito das mulheres e incentivando a violência doméstica. Como a maior parte destes casos envolve feminicídios ou tentativas de feminicídio, o Ministro Gilmar Mendes afirmou ser inadmissível que homens, que se sentem traídos, agridam e matem outras pessoas para supostamente defender sua honra, declarando sua abusividade. Há, no entanto, uma discussão significativa sobre a legitimidade da vedação de uma tese de defesa pelo STF, sendo que a imposição de uma negativa de escolha ao advogado deve ser vista com ressalvas. Cabe ressaltar, por fim, que isto não veda a possibilidade de defesa em um tribunal do júri, já que, com a defesa técnica adequada e de acordo com o caso concreto, existem outras formas de justificação e demonstração de menor culpabilidade da conduta praticada ao Conselho de Sentença.

Direito de Crítica e lei de segurança nacional

   

Ícaro Leon

      Recentes foram os casos envolvendo a imputação de crimes previstos na Lei de Segurança Nacional (Lei. n.  7170/83) (LSN), originados principalmente após a apresentação de apontamentos críticos às autoridades e às instituições brasileiras. Também, em recente levantamento fornecido pela Polícia Federal, restou demonstrado um recorde de investigações abertas, em 2020, buscando averiguar a prática dos delitos insertos na referida lei – praticamente o dobro se comparado a 2019[1]. Assim, exsurge a seguinte questão: mesmo frente a liberdade de manifestação garantida pela CRB/88 (art. 5º, IV, IX, da CRB/88), por quais motivos ainda permanece a possibilidade de criminalização de determinadas opiniões pessoais? Para responder a tal questionamento, essencial verificar que os procedimentos investigatórios se debruçam sobre os arts. 22 e 26, da LSN, criminalizando: “a realização de propaganda pública de: processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social” (art. 22, I); “de discriminação racial, de luta pela violência entre as classes sociais, de perseguição religiosa” (art. 22, II); “de guerra” (art. 22, III); “de qualquer dos crimes previstos nesta Lei” (art. 22, IV); além da calúnia ou difamação do “Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação” (art. 26). Denota-se, portanto, que os referidos dispositivos presentes na LSN, instituída em um contexto político diverso do que ora nos encontramos, a saber, o Estado Democrático de Direito, objetiva resguardar a ordem institucional, bem como as instituições mencionadas no art. 26. Contudo, a despeito de tais objetivos, a ausência de critérios subjetivos para se definir claramente quais atos são crimes e quais atos são manifestações pessoais legítimas, proporcionam alargamento nas possibilidades de imputações, ocasionando, por consequência, a criminalização de meras opiniões e críticas pessoais. É dizer. Não existem parâmetros seguros para se definir se determinado ato pode ser considerado uma crítica legítima a determinada gestão governamental ou institucional, ou se a conduta perpetrada pelo indivíduo constitui como uma tentativa, ou efetiva realização, de ato contra a Segurança Nacional. Percebe-se, por consequência, que a criminalização ocorre principalmente pelo fato da lei instituir que somente será necessário levar em consideração “a motivação e os objetivos do agente” (art. 2º, I), bem como “a lesão real ou potencial aos bens jurídicos mencionados” no art. 1º, caso os delitos praticados pelo agente estejam previstos no Código Penal, no Código Penal Militar ou em leis especiais. Ou seja, para a imputação dos crimes apenas previstos na LSN, não é necessário se verificar o objetivo do agente, se ele efetivamente buscava atentar contra a segurança nacional, a ordem política e social vigente, o que viabiliza que qualquer tipo de manifestação crítica à ordem vigente, até as mais comedidas, possa ser enquadrada como uma propaganda em desfavor dos elementos presentes no art. 22 – já mencionados acima. Ademais, o próprio normativo confunde, por motivos próprios, as pessoas das autoridades públicas e as instituições representadas por essas, viabilizando que qualquer tipo de crítica mais contundente aos indivíduos presentes no art. 26, se configure como o crime ali previsto. Entretanto, sabe-se que a crítica a determinado indivíduo, mesmo que público, deve ser resolvida no âmbito dos Crimes contra a Honra insertos no Código Penal, não representando tais opiniões, necessariamente, em crimes lesa pátria. No mais, percebe-se que o tipo penal, é deveras aberto e vago, permitindo que diversos atos sejam entendidos como atos ilícitos, situação que desobedece aos critérios do Princípio da Legalidade (art. 5ª, XXXIX, CRB/88), não limitando, deste modo, a incidência do poder punitivo em desfavor do indivíduo.
[1] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/02/bolsonarismo-reaviva-articulacao-para-substituir-lei-de-seguranca-nacional-entulho-da-ditadura.shtml> Acesso em 24.out.2020

Flagrante de crime mediante postagem na internet

 

José Arthur Kalil

 

 

A prisão em flagrante do parlamentar Daniel Silveira, deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro, determinada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, propicia análise jurídica quanto ao que se considera estado de flagrância.  De acordo com o Código de Processo Penal brasileiro:

Art. 302.  Considera-se em flagrante delito quem: I – está cometendo a infração penal; II – acaba de cometê-la; III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração. Art. 303.  Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência.

Nos termos do art. 303, o flagrante relacionado aos crimes permanentes prolonga-se no tempo.  Enquanto o crime estiver sendo cometido, ou seja, não cessada a permanência, o estado de flagrante perdura-se.  Exemplo clássico de crime permanente é o sequestro.  Enquanto houver a privação da liberdade da vítima, o agente está em flagrante delito, podendo ser preso por tal razão.

Num crime contra a honra, difamação, por exemplo, existe a consumação do delito no instante em que um terceiro toma conhecimento de uma manifestação depreciativa contra alguém. A consumação, pois, nesse caso não perdura no tempo, como num delito de sequestro. Contudo, se o crime contra a honra vier a ser praticado por meio de postagem disponibilizada na internet, é de se considerar para a análise a possibilidade em tese de tal crime atingir a consumação toda vez que alguém acessar o conteúdo desonroso, como se pode concluir da decisão manifestada pelo STF.

A situação do acesso posterior à postagem não é simples e incita interessante discussão jurídica.  De um lado, há de se preservar a imediatidade inerente ao flagrante delito, justificador da prisão que pode ser feita nas quatro situações descritas pelo art. 302.  Lembra-se que, fora dessas situações, não se está diante de flagrante delito e a captura de alguém a esse título, deslegitima a prisão, sendo ilegal.

De outro lado, não se pode fechar os olhos à contemporânea forma de comunicação existente na atualidade, em que a pessoa torna pública determinada manifestação pessoal, por vezes desonrosa e delituosa, disponibilizando-a na rede, permitindo imediato ou posterior acesso ao alcance de todos os internautas ou dos inscritos em determinada rede social.

Veja-se: o crime pode ter sido cometido há horas ou dias, mas, pelo fato de ter vindo ao conhecimento público em momento posterior, viria a ser consumado também em momento posterior ao da postagem, de acordo com o entendimento do STF.  Com relação ao crime contra a honra, a situação é delicada pela tensão propiciada entre esses dois vetores (imediatidade e nova forma de manifestação), havendo possibilidade de duplo entendimento entre a possibilidade de tal flagrante.

A decisão do Ministro Alexandre de Moraes considera a infração praticada supostamente por Daniel Silveira, crime contra a honra de Ministros do STF, como crime permanente, possibilitando a prisão em flagrante, conforme a previsão do art. 303 do Código de Processo Penal[1].

Assim, um delito que, normalmente vem classificado pela doutrina tradicional como de consumação imediata ou instantânea, quando praticado por postagem na rede, pode ser considerado permanente graças a uma interpretação contemporânea.

Este brevíssimo escrito, longe de pretender debater questões outras envolvendo a prisão do parlamentar referido, teve como objetivo lançar luzes sobre estado de flagrante em crimes praticados por meio de manifestações pessoais, dentre os quais estão os delitos contra a honra.  Fica aberto o convite aos juristas para repensarem os limites da prisão em flagrante dispostos no atual art. 302 do Código de Processo Penal.

Fica a provocação final: basta reclassificar o crime, de consumação instantânea para de consumação permanente, para alterar o estado de flagrante e possibilitar a prisão a este título?


[1] “Relembre-se que, considera-se em flagrante delito aquele que está cometendo a ação penal, ou ainda acabou de cometê-la.  Na presente hipótese, verifica-se que o parlamentar DANIEL SILVEIRA, ao postar e permitir a divulgação do referido vídeo, que repiso, permanece disponível nas redes sociais, encontra-se em infração permanente e consequentemente em flagrante delito, o que permite a consumação de sua prisão em flagrante” (Inquérito 4781/DF, decisão cautelar de 16/02/2021).

Kalil e Pires na Competição Brasileira de Direito e Processo Penal

Os sócios José Arthur Kalil e Raphael Pires foram adjudicadores das fases orais na 1ª Competição Brasileira de Direito e Processo Penal, organizada pelo Instituto de Ciências Penais (ICP), por meio da comissão ICP Jovem.

A advogada Beatriz Vasconcelos e o advogado Ícaro Leon, associados ao escritório, integraram a Comissão organizadora do evento, que contou com a participação de 52 equipes, de 28 instituições de ensino, de diversas unidades federativas.

Em razão da pandemia da COVID-19, o evento de seu de forma totalmente virtual e ocorreu nos dias 5 e 6 de março de 2021.